quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A reescrita do guião em dez passos

Por João Nunes

A rees­crita do guião em dez pas­sos10.0102

Ter­mi­nou a pri­meira ver­são do seu guião? Para­béns! Já fez mais do que 90% dos can­di­da­tos a gui­o­nis­tas. Mas ainda há muito a fazer; nem pense em mos­trar o seu guião sem pri­meiro pas­sar pela fase da rees­crita. Por muita von­tade que tenha de ouvir outras opi­niões, nunca dê a ler a nin­guém, espe­ci­al­mente a um pro­fis­si­o­nal, um guião com que não esteja 100% satis­feito; não há uma segunda opor­tu­ni­dade para cau­sar uma boa pri­meira impressão.

Este artigo está, a título expe­ri­men­tal, dis­po­ní­vel como uma “folha de ajuda” em for­mato .pdf. Se achar esta solu­ção útil, deixe a sua opi­nião nos comentários.

Baixe aqui: A rees­crita em 10 pas­sos (145)

A rees­crita

O segredo de uma boa rees­crita é não que­rer cor­ri­gir tudo ao mesmo tempo. Fica mais fácil, e é mais pro­vei­toso, se pas­sar várias vezes pelo guião, abor­dando um deter­mi­nado tipo de pro­ble­mas de cada vez. É como se, em cada etapa, colo­casse uma lente dife­rente no seu olhar, para fil­trar uma e só uma faceta do tra­ba­lho. Veja­mos então o que tem de fazer, passo a passo:

  1. Repouso. Deixe o seu guião des­can­sar durante algu­mas sema­nas, duas no mínimo. Apro­veite para des­can­sar, cele­brar e come­çar a pen­sar nou­tros pro­je­tos. É per­mi­tido gabar-​​se junto da famí­lia, ami­gos e Face­book. Ao fim deste período de repouso, que lhe irá dar uma visão mais dis­tan­ci­ada e impar­cial do seu tra­ba­lho, imprima uma cópia em papel, arranje uma caneta ver­me­lha, e siga sem pie­dade as eta­pas seguintes.
  2. Lei­tura geral. Em pri­meiro lugar, dê uma lei­tura com­pleta ao seu guião, de um só fôlego. Pode tomar algu­mas notas de pro­ble­mas que lhe sal­tem logo à vista, mas não deixe que isso tire o ímpeto da lei­tura. O obje­tivo é sen­tir o ritmo, o balanço e a pro­gres­são natu­ral da estória.
  3. Enredo. As pri­mei­ras rees­cri­tas que fizer devem come­çar do geral para o par­ti­cu­lar. Nesta fase pode ser neces­sá­rio fazer gran­des alte­ra­ções à estó­ria ori­gi­nal — um arran­que novo, um final dife­rente, até mudar com­ple­ta­mente a ideia ori­gi­nal. Não tenha medo de expe­ri­men­tar. A pre­missa básica é forte? A ques­tão dra­má­tica está clara? Sente-​​se urgên­cia e pres­são no pro­ta­go­nista? Há sur­pre­sas e revi­ra­vol­tas sufi­ci­en­tes? Pro­cure os pon­tos fra­cos do seu enredo, os erros na lógica da estó­ria, os seg­men­tos des­ne­ces­sá­rios ou mais abor­re­ci­dos, as falhas no enca­de­a­mento das sequên­cias, etc. Seja abso­lu­ta­mente honesto con­sigo mesmo; se tiver dúvi­das em rela­ção a algum aspecto, não des­canse enquanto não tiver a cer­teza de que não con­se­gue escre­ver uma alter­na­tiva melhor.
  4. Per­so­na­gens prin­ci­pais. Esta tam­bém é a altura certa para fazer mudan­ças radi­cais nos per­so­na­gens: tal­vez o pro­ta­go­nista ideal seja um outro per­so­na­gem, ou deva ser mulher em vez de homem, ou moto­rista em vez de pro­fes­sor uni­ver­si­tá­rio. E o anta­go­nista, como é que pode ser melho­rado? Ana­lise os obje­ti­vos e moti­va­ções da cada per­so­na­gem cen­tral; são cla­ros e coe­ren­tes? Os seus per­cur­sos indi­vi­du­ais são lógi­cos? Os seus com­por­ta­men­tos são con­sis­ten­tes? As suas trans­for­ma­ções (no caso de as haver) são com­pre­en­sí­veis e justificadas?
  5. Estru­tura. Ava­lie a estru­tura do seu guião. Está no tama­nho certo (90 a 110 pági­nas)? O prin­cí­pio, meio e fim da estó­ria estão bem demar­ca­dos e equi­li­bra­dos (±25%/50%/25%). A estó­ria arranca rapi­da­mente ou arrasta-​​se no iní­cio? A inten­si­dade dra­má­tica segue em cres­cendo? O segundo acto tem massa crí­tica e con­sis­tên­cia dra­má­tica? O final tem um clí­max claro ou está confuso?
  6. Per­so­na­gens e enre­dos secun­dá­rios. Resol­vi­das as gran­des ques­tões, é altura de entrar numa malha mais fina. Ava­lie se os enre­dos e per­so­na­gens secun­dá­rios con­tri­buem para a estó­ria prin­ci­pal ou são meras dis­trac­ções. Se forem pou­cos, o guião pode pare­cer pobre; se forem demais, pode ficar con­fuso. Tam­bém por esta altura deve­mos come­çar a sen­tir qual o ver­da­deiro tema da nossa estó­ria. Nesse caso, como é que os per­so­na­gens e enre­dos secun­dá­rios podem aju­dar a tor­nar mais claro esse tema?
  7. Cenas. Passe para a aná­lise das cenas indi­vi­du­ais, da sua dinâ­mica interna, dos con­fli­tos e ten­sões. Certifique-​​se de que as cenas são mesmo neces­sá­rias. São cla­ros os moti­vos e obje­ti­vos de cada per­so­na­gem? Como estão escri­tas as des­cri­ções? São sucin­tas ou dema­si­ado arras­ta­das? A lin­gua­gem que usa é pre­do­mi­nan­te­mente visual, cine­ma­to­grá­fica? Só está a des­cre­ver o que pode ser visto ou ouvido, ou escre­veu coi­sas que não são fil­má­veis? O seu estilo de escrita é con­creto mas tam­bém evo­ca­tivo e ins­pi­ra­dor? Não escreva pará­gra­fos lon­gos demais e não use lin­gua­gem com­pli­cada ou bar­roca. Certifique-​​se de que cada cena tem ape­nas a dimen­são neces­sá­ria e sufi­ci­ente. Entre na cena o mais tarde pos­sí­vel, e saia o mais cedo que con­se­guir. Tente encon­trar for­mas inte­res­san­tes de ligar cada cena à que se lhe segue.
  8. Diá­lo­gos. Os diá­lo­gos podem come­car a ser revis­tos em para­lelo com a rees­crita das cenas, mas devem mere­cer pelo menos uma revi­são com­pleta só focada neles. Soam natu­rais? São escor­rei­tos e inte­res­san­tes? Há um sub­texto rico, ou são dema­si­ado lite­rais? Cada per­sonagem tem uma voz pró­pria e dis­tinta? Para ava­liar este último aspeto pode ser útil fazer várias revi­sões, cada uma do ponto de vista de um personagem.
  9. For­mato. Veri­fi­que se a for­ma­ta­ção que usou está cor­reta de acordo com os parâ­me­tros do mer­cado. Use ape­nas a fonte Cou­rier 12 e res­peite as mar­gens cer­tas para cada ele­mento (cabe­ça­lho, acção, per­so­na­gens, etc…). O for­mato é impor­tante por­que, teo­ri­ca­mente, ajuda a que cada página cor­res­ponda a um minuto de filme. Se usar um soft­ware de escrita como o CeltX isto fica mais fácil. Se usar o Word, pro­cure um modelo como aquele que eu indico no blogue.
  10. Gra­má­tica e orto­gra­fia. Por fim, cor­rija a cons­tru­ção das fra­ses, e reveja as “gra­lhas”. Não des­cure este último aspecto  —  um guião mal escrito e cheio de erros de orto­gra­fia (como já vi alguns) tem um ar muito pouco “profissional”.

Durante todo este pro­cesso, não se esqueça de se pôr sem­pre no papel do lei­tor e, prin­ci­pal­mente, do espec­ta­dor do filme final. Em cada momento, em cada cena, que infor­ma­ção é que eles já têm? O que é que sabem e o que é que lhes falta ainda des­co­brir? Que emo­ções devem estar a sen­tir? O que pode ser melho­rado para os man­ter agar­ra­dos à estória?

Quando achar que, sozi­nho, já não con­se­gue melho­rar o seu guião, está na altura de pedir ajuda externa. A pri­meira coisa a fazer é registá-​​lo no orga­nismo público com­pe­tente. Em Por­tu­gal é o IGAC, no Bra­sil é o Escri­tó­rio dos Direi­tos Auto­rais de cada Estado.

Depois de regis­tado, dê-​​o então a ler a pes­soas da sua con­fi­ança, que tenham a capa­ci­dade de inter­pre­tar um guião. Conte com algum tempo para esta etapa, pois não é fácil arran­jar a dis­po­ni­bi­li­dade neces­sá­ria para fazer uma lei­tura atenta de um guião.
Prepare-​​se para alguma sur­pre­sas. Quem lê um guião sem ideias fei­tas vai des­co­brir aspec­tos — posi­ti­vos ou nega­ti­vos — que lhe podem ter esca­pado. Não é obri­gado a acei­tar todas as crí­ti­cas e suges­tões que lhe sejam fei­tas, mas não adi­anta muito dar a ler um guião se depois ado­tar uma ati­tude mera­mente defen­siva em rela­ção ao que escre­veu. Man­te­nha o espí­rito aberto e aceite a neces­si­dade de vol­tar a rees­cre­ver o seu guião, se isso con­tri­buir para o melhorar.

Repita este pro­cesso as vezes que forem neces­sá­rias. Só depois de todas estas eta­pas cum­pri­das deverá colo­car o seu guião nas mãos de um pro­du­tor ou rea­li­za­dor, com a segu­rança de estar a mos­trar o seu melhor trabalho.

Boas (re)escritas.

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